domingo, 22 de fevereiro de 2015

REBEL HEART: uma resenha temática


NOTA: a ideia que norteou esse texto me foi dada por Ailton Palaria. Muito obrigado!

O número 13 é considerado poderoso por diversas correntes místicas. Associado às noções de mudança, término e recomeço, firma-se tanto sob a luz e a escuridão, sendo inclusive associado à Morte, uma das mais intrigantes cartas do Tarô. 13 é o número sequencial do próximo disco de Madonna, Rebel Heart, e sabendo que ela já se valeu de numerologia no passado, era de se esperar que sua influência voltasse com toda força em 2015. Portanto, firmando-se num tripé constituído pelo amor, o sexo e a fé (três elementos que sempre se confundem), o coração rebelde da artista nos propõe uma viagem pelo caos, conhecimento, resiliência e renascimento.

Madonna já havia declarado que Rebel Heart representava dois lados de sua identidade: o sentimento e vulnerabilidade do “coração”, e a contravenção e astúcia do “rebelde”. Inicialmente o disco seria duplo, mas tomar a decisão por um trabalho único de 19 faixas (a primeira versão oficialmente divulgada) foi bem mais coerente. Afinal, nos momentos de raiva costumamos estar extremamente frágeis, e no mundo de hoje não existe atitude mais rebelde que professar o amor. E é o que já ouvimos bem no começo do disco, com Living For Love.



Ao anunciar que continuará vivendo pelo amor, mesmo tendo sido ferida ao vivê-lo, a cantora reafirma que sempre é possível recomeçar, ter fé de que o futuro reserva coisas melhores. Essa esperança quase cega de que o amor a salvará de toda mágoa nos remete a noções religiosas, a exemplo da citação clássica "Deus é amor” (nome de uma das demos vazadas), e para reforçar esse aspecto existem na música elementos do gospel que não víamos desde Nothing Fails (2003). O que segue Living For Love é mais um relato de fé, na qual se pede pela coragem de não ceder à ilusão dos sentidos, em nome da salvação da alma. Mas o que seria salvar a alma?

Devil Pray trata de como o uso de drogas pode iludir as pessoas na busca de alguma satisfação. Ainda que a cantora cite várias delas na canção, existem muitas "drogas" por aí que nos oferecem a ilusão de que a vida é menos dura — mesmo que depois percebamos a ingenuidade de acreditar nelas. Salvar a alma aqui diz respeito a buscar autoconhecimento, "ter sua história contada" de modo a perceber que a vida é maior que tudo o que buscamos como consolo. No fim das contas, é preciso procurar aquilo que nos faz sobreviver ao caos, invés de coisas que mais cedo ou mais tarde venham a infligi-lo. Ghosttown, a próxima canção, nos traz a ele.

O caos, apocalipse, a destruição de tudo o que conhecemos é temática recorrente em Rebel Heart. Não só na música supracitada, mas em canções como Hold Tight ou Queen (faixa não-lançada oficialmente), Madonna canta sobre como o mundo vem passando por um momento crítico, e as chances de que possamos sair vivos dele são poucas. A única escapatória para todo esse drama é a compaixão, vivenciada no companheirismo e no apoio que podemos oferecer um ao outro. É acreditando nisso que ela canta: “quando tudo desabar, serei sua chama quando as luzes apagarem. Quando não restar mais ninguém por perto, seremos duas almas numa cidade fantasma”.

Essas ideias podem “sacralizar" Madonna, uma vez que até aqui seu discurso esteve mais centrado no que ela acredita ser certo ou errado. Talvez para mostrar que também é gente como a gente, e não uma monja obcecada em citar verdades universais, chegamos numa música abusada que marca território já em seu título: “Vadia Sem Remorso”. Querendo mandar a real para um desafeto, Unapologetic Bitch discorre sobre como é preciso às vezes ser um pouco mais audacioso para conseguir reerguer-se depois de um trauma. O discurso de paz e amor tem suas vantagens, mas assumir seus rancores também; são fases e mais fases até a libertação.

Pegando carona na confrontação anterior, somos apresentados a Illuminati, tematizada nos boatos de que grandes artistas do mainstream estão sempre passando mensagens ocultas e profetizando, em suas músicas, vídeos e performances, a nova ordem mundial. A cantora deixa claro que Os Iluminados são grandes personalidades do passado que contribuíram de forma crucial à humanidade, tocando na ferida de tantas teorias da conspiração que sempre acompanharam seu nome. Há de se comentar, por outro lado, que é um pouco suspeito em seu décimo-terceiro disco ter uma faixa que trate de elementos que esbarram em misticismo e satanismo — não deixa de ser uma escolha intrigante.

Talvez para quebrar um pouco a tensão do tema anterior, deparamo-nos com uma canção meio boba e com elementos autocomemorativos semelhantes a Give Me All Your Luvin’ (2012). Bitch I’m Madonna foi produzida para alcançar um público jovem e ávido por canções para se divertir, pura e simplesmente. Rebel Heart volta a ser frívolo em outros momentos, mas normalmente quando se associa ao sexo e não simplesmente nessa vibe “let's get lost”; tanto que logo em seguida o disco assume um tom mais doce com a já citada Hold Tight e uma balada acolhedora, Joan of Arc.

É cantando sobre ainda não ser Joana D’arc que Madonna mais esparrama seu coração para o ouvinte. Com uma melodia suave e uma letra que procura explorar a fragilidade e humanidade da mulher por trás da artista, sua voz carrega uma vulnerabilidade que inspira cuidado e ternura. Não deixa de ser revigorante perceber que essa inspiração ainda resiste, e se reflete na resiliência que a fez sobreviver às pressões sofridas por toda sua vida. É um momento de alento, bastante bem vindo, mas que quase se dissipa na canção que a sucede, a explosiva Iconic.



Sendo introduzida por um discurso convincente de Mike Tyson, a cantora discorre sobre manter-se firme e fiel a si próprio como a principal ferramenta para alcançar o status de ícone. E oferece, mesmo que de forma manjada, a chance ao ouvinte de acreditar que podemos também ser icônicos, independente de qual escala nossa importância consiga alcançar. É mais uma música sobre assumir-se e se desenvolver para ser único, uma super-estrela por predestinação. Curiosamente, toda essa autoconfiança parece abalada logo em seguida, quando a artista nos leva a visitar à Cidade do Coração Partido.

HeartBreakCity é poderosa e universal. Todos já nos sentimos traídos por alguém a quem daríamos tudo, acreditando em intenções sinceras que se verteram num jogo do qual mal acreditamos termos tomado parte. Madonna canta com uma raiva resignada, de quem não pode fazer muita coisa além de amaldiçoar o dia em que conheceu seu desafeto, e ao servir suas emoções numa bandeja para o ouvinte, permite-nos perceber que a dita vadia sem remorso era só uma mulher ferida na guerra. A percussão marcial ainda reforça seu tom de batalha, até a canção terminar em notas singelas de um piano solitário.

Depois de um momento intenso, o disco suaviza numa faixa cheia de nuances, na qual o sexo e o amor dançam de forma sutil. Body Shop relata o desejo por um homem que “trabalha numa oficina mecânica”, e com metáforas engraçadinhas e um instrumental gentil, nos introduz à porção mais carnal do Rebel Heart. A canção que a segue é bem mais abusada e se usa de imagens religiosas para incitar o êxtase, sexual e espiritual; dessa vez, no entanto, há um ar debochado, que a distingue de Like a Prayer (1989). Em Holy Water ouvimos Madonna sugerir que suas partes íntimas tem sabor de água benta, e para provar delas é preciso se abençoar e ajoelhar. Há ainda uma referência a seu hit Vogue (1990), que por coincidência ou não já havia sido citado na canção Deeper and Deeper (1992), do Erotica.

Inside Out é mais uma que passeia entre o sexo e o amor, com uma certa tensão trazida pelo seu instrumental. Os versos são acompanhados de batidas pesadas, assumindo um tom mais leve no refrão e na ponte que leva ao final da música. Sua função, na verdade, é introduzir o momento climático de Rebel Heart, que serve ainda como última faixa de sua versão comum: Wash All Over Me. A canção reflete sobre temas como a morte, a resignação e a fé de que as coisas tomarão seu curso, mesmo que tudo escape de nossa vontade. Aceitar que a vida pode nos mudar de forma irreversível, e deixar que a tempestade desabe sobre nossas cabeças porque, de alguma maneira, saímos vivos dela, essa é sua mote. Considerando que a cantora já havia discorrido sobre suas ilusões e mágoas sentimentais mais cedo, é uma ótima conclusão para esse capítulo, permitindo assim que uma espécie de retrospectiva seja feita nas faixas seguintes.

Best Night e S.E.X. são essencialmente sexuais e remetem a dois momentos polêmicos na carreira da artista: a primeira usa versos de Justify My Love em sua ponte, enquanto a segunda nos oferece “uma lição em sexologia”, na qual Madonna lista fetiches dos mais diversos e nos faz lembrar do Sex Book. Vale tomá-las como gancho para falar sobre a insistência da cantora em manter sua persona sexual viva, mesmo aos 56 anos de idade. Ela já deixou claro em entrevistas que ao expressar sua sexualidade, tem por objetivo desmistificar a ideia de que uma mulher mais velha não tem direito de vivenciá-la. Aqui, o que bem prevalece é o lado rebelde do disco e, consequentemente, de sua personalidade.

Mais claras na ideia de retrospectiva são Veni Vidi Vici, canção amparada pelo rap certeiro de Nas, e a faixa-título do álbum. Na primeira passeamos por vários momentos importantes de vida profissional da artista, as quais culminam com o simbólico verso: “Music saved my life”; na última, temos uma visão mais íntima de sua história, nos levando desde seus dias de confronto com o pai até o momento atual, em que depois de quase morrer ao buscar seus sonhos, ela finalmente se vê onde exatamente queria estar. Por mais que pareçam pura auto-reverência, são músicas que refletem e ponderam sobre a vida de uma mulher que cresceu sob os olhos do mundo por quase 35 anos, e mostram como uma busca incessante por prestígio e, mais tarde, autoconhecimento a levou para lugares que jamais imaginaria chegar. Mais que vaidosas, são inspiradoras, e concluem com tom de esperança um disco no qual o ir, o vir e o devir constituem a essência da vida.

Pelo seu contexto, Rebel Heart pode parecer um disco de despedida, uma vez que nos remete às suas várias fases, tanto tematica como sonicamente. No entanto, seu vigor e paixão nos mostram o quanto a artista ainda tem a oferecer, e não está disposta a simplesmente se escorar em tudo o que fez para manter seu status e reconhecimento. Na canção Messiah, penúltima desta coleção, ela canta sobre não querer chegar ao fim de seus dias sem ter se impressionado, o que indica a fome que lhe resta de se deixar maravilhar pelo mundo. Ainda, metaforiza sobre lançar um feitiço inquebrável, até que seu alvo acorde para o fato de que a ama também. A quem Madonna quer encantar, essa é uma questão curiosa. Mais curioso, no entanto, é perceber como depois de tanto tempo o encanto ainda está lá, nas profundezas de seu coração rebelde.